ALGODÕES E VENTOINHAS (1º Lugar/2012)

 


  As tardes com suas manias de se arrastarem lentas na modorra de um sol improdutivo, que não cultivava nada, eu tinha a impressão de que o jardim tinha um sol diferente só pra ele, o resto do mundo tinha um sol gigante que não era o meu. Eu nunca tinha perguntado pra ninguém mas eu sabia que não era o mesmo sol, era qualquer luz emprestada, falha, provisória, acima de tudo provisória, e talvez eu tivesse receio de que um dia viessem tomá-la de mim.
     A terra do jardim quase não tinha grama e eu me ocupava em esfregar os pés numa patinação poeirenta, erguendo de leve o vestido em ares de dama como se no caminho uma torrente lamacenta, a princesa firme contra a correnteza, era preciso chegar até a árvore, a grande árvore, e me agarrar a ela até que alguém me salvasse, mas geralmente não era preciso salvamento, eu ficava lá agarrada até cansar ou distrair, o braço cedendo aos poucos,  horas e horas esquecida ao pé da árvore feito um fruto caído, talvez esperasse que os passarinhos viessem em bicar  mas não, a árvore era a única coisa que tinha dado conta de crescer naquele simulacro de sol.
     De vez em quando eu saía na rua e tentava falar com alguém, mas não havia nada a dizer, a não ser que fosse o pão, o leite, as horas, n]ao havia nada que eu soubesse dizer a alguém, não havia nada no meu jardim ou além dele, e eu voltava falando sozinha, porque a mim havia muito a dizer, e ao entardecer a rua ia ganhando luzinhas que falseavam com o vento, vinha um cheiro morto de peixe. Eu voltava correndo e atravessava o quintal com o sol cada vez mais encardido e entrava na casa no galope emborrachado das sapatilhas e antes que eu pudesse entrar no quarto dela uma senhora magra demais me puxava pela manga do vestido e docemente dizia que ela estava dormindo, ela sempre estava dormindo, era preciso o repouso, o repouso.
     Essa senhora, lembro que era uma senhora que ajudava, durante muitos anos foi a senhora que ajudava, mas se a minha mãe não saía da cama nunca entendi quem é que pagava o salário, se havia um salário, era uma senhora de longos vestidos, longos cabelos, braços, uma senhora longa, uma voz doce mas qualquer coisa áspera na garganta, ela me chamava de menina, apenas menina, nunca o nome, quase ninguém me chamava o nome, talvez já fosse o tempo de eu ir à escola, mas não há como saber, na minha cabeça simplesmente não havia crianças em toda a cidade, com se um flautista raivoso houvesse levado todas para sempre na melodia hipnótica, apenas eu esquecida dormindo caída ao pé da arvorezinha. Eu só queria entrar um pouco, só ia dar um beijo, mas ela dizia que não, não podia incomodá-la assim.
     Não entendia a doença, ninguém poderia dizer o que era a doença e talvez eu achasse que o mundo era assim, que as pessoas adultas, as mães, viviam na escuridão dos quartos, nas suas camas quentes demais, e apenas de vez em quando, se podia visitá-los, eu só queria perguntar alguma coisa, mas quando eu entrava eu não sabia o que perguntar, não havia dúvidas, porque não havia nada nesse mundo que eu soubesse. Queria perguntar se éramos pobres ou ricos, porque eu não fazia ideia, talvez não fôssemos pobres mas havia coisas estranhas na casa, não tínhamos muitos pratos, era preciso lavá-los a cada uso, não tínhamos muitas toalhas, eu me lembro disso, e, apesar do sol mequetrefe que haviam destinado ao nosso quintal, fazia muito calor, um calor abafado, confinado, e nós tínhamos ventiladores.
     Não conseguia saber desde quando aquela doença, mas de alguma forma sentia que era minha culpa, tentava minimizar o caso, abria as janelas e ela gritava, e eu fechava depressa, assustada, mas muito irritada, era preciso sarar, era preciso parar de me culpar por tudo aquilo, a essa altura já tinha olhado pela janela de muitas casas e nenhuma delas tinha uma mãe doente trancada no quarto, isso não fazia parte da história natural das famílias. Tenho a sensação de que a senhora que cuidava, porque era isso que ela era, uma senhora que cuidava, de vez em quando perdia a paciência, senão com as minhas perguntas, com o meu silêncio, e desabafava que era tudo minha culpa, e a necessidade de que tudo aquilo acabasse foi ficando extrema. Eu era um corpinho minúsculo espreitando as sombras do quarto, ao pé da cama perguntava se ela não queria brincar comigo lá fora, era a maneira que eu tinha de dizer que o tempo dela já tinha acabado, que eu não tinha feito nada de tão grave para um castigo tão longo, as mãos dela sempre úmidas no meu rosto, uma sensação de tumba, um carinho que eu repelia mas queria tanto e me dividia em duas meninas desesperadas para fugir e para ficar ali entre as cobertas purulentas.
     Naquela manhã, uma manhã que tinha surgido insuportavelmente lenta como todas as outras, o calor era demais e os gemidos dela atravessavam as portas, a senhora que cuidava fechava todas mas eu continuava ouvindo lá do jardim. Eu ficava contente por ela fechar as portas, e o fato de haver tantas portas para fechar me fazia pensar que talvez nós fôssemos ricos, sim, talvez muito ricos, e eu ficava contente por ela se preocupar comigo e fechar as portas. Mesmo assim subi correndo as escadas e encontrei minha mãe encharcada de suor e panos úmidos, a senhora que cuidava me olhou assustadíssima e me espantou como se afasta um cachorro, depois disse que estava tudo bem, que eu devia brincar lá fora. Eu disse que minha mãe precisava de um ventilador, e nessa hora minha mãe me deu o mais sincero dos sorrisos, ficou ali deitada, a cabeça pendendo sobre o braço da senhora que cuida, sorrindo, talvez chorasse mas havia tanto suor em todo o rosto, nos cabelos longuíssimos que estavam ficando muito finos, os olhos muito verdes, a única coisa clara reluzindo no quarto, as janelas incompreensivelmente fechadas.
     Nessa manhã minha mãe tinha feridas de mais, parecia que por toda a pele vulcões em súbita atividade, algodões espalhados por todo o corpo, a senhora que cuidava cuidando desesperadamente, não havia mão para tantas compressas, os algodões em fiapos grudando no suor, no sangue, em tudo aquilo que saía dela enquanto ela me olhava com a cabeça pendendo pra trás e talvez o sorriso fosse uma acusação, eu querendo dizer que tudo já ia passar e que não era necessário tanto escândalo mas os olhinhos continuavam e a senhora que cuidava também me olhava, agora as duas estáticas, e a minha mãe me pediu, quase sem voz, que arranjasse um ventilador.
     Saí pelo jardim arrastando terras, pedras, corri pelos mesmos lugares de sempre, e era como se não houvesse vizinhos, olhavam reticentes, eu tentava dizer alguma coisa mas não estava acostumada a falar com ninguém e quando eu falava dela me fechavam as portas, comecei a pensar que talvez a doença fosse suja, que a culpa não fosse minha mas que eu fosse um sórdido efeito da enfermidade, um fruto insólito da podridão, caída e esquecida embaixo da árvore. Voltei suada num cansaço pleno, naquela manhã percorri toda a rua e voltei cinco, dez anos mais velha.
     Na cozinha, a geladeira perdendo seu tempo com restos que ninguém comia. A parte de trás coberta de um pó arraigado, um pó que nunca sairia de lá. Lembrei o porão e as geladeiras quebradas, as portas soltas, as engrenagens, e o fato de termos um porão com geladeiras quebradas também me fez concluir que éramos de fato ricos. Ricos.
     Subi tropeçando, segurando sobre o ombro a parte de trás de uma delas, cinco ventoinhas poeirentas e o cabo da tomada arrastando no chão. Quando entrei com as ventoinhas as duas mulheres me olharam como seu eu viesse montada num cavalo, como se entrasse com um rinoceronte, um javali puxado por uma coleira. Minha mãe engoliu com dificuldade qualquer coisa que estava tomando e me sorriu, chegou a apontar a tomada ao lado da cama.
     A senhora que cuida ajeitou a cabeça da minha mãe no travesseiro e na minha memoria ela simplesmente desapareceu do quarto, sumiu, foi buscar alguma coisa lá embaixo e não voltou, acho que não voltou nunca mais, como costumam fazer as pessoas, acho que já saiu chorando. Os algodões espalhados pela cama, puxei um chumaço e molhei na bacia ao lado da cama, fui passando devagar nas ventoinhas, uma maçaroca preta de algodão ia caindo na cama mas ela não reclamava, limpei uma por uma, o pó quase definitivo soltando em grumos. Os bracinhos doídos segurando as bordas da grade imensa, quase uma criança em ruz esfregando e assoprando ventoinhas, a ferrugem se desfazendo marrom nos algodões.
     Quando liguei na tomada eu já não acreditava que fossem mesmo funcionar, por um momento foi importante que apensas estivessem limpas, mas de repente elas giraram, as cinco ventoinhas num vendaval discreto, uma extravagancia que minha mãe aceitou de olhos fechados contra  brisa, nossos cata-ventos domésticos, algodões grudados bamboleantes na ventania. Fiquei ali segurando a grade com as ventoinhas e minha mãe foi fechando mais e mais os olhos, já não suava nem chorava, já não gemia, o sorriso relaxando devagar no vento, o rosto cada vez mais frio, a ponta do nariz gelada, quem sabe o vento um trenó descontrolado, feroz, despescando nas montanhas bonitas de neve.


     Os algodões na cama, piquei todos, arranquei os pedaços, os algodões brancos espalhados, flutuando sobre ela, as ventoinhas e os algodões num redemoinho gelado de plumas, quem sabe fosse Natal e o quarto nevando como nos cartões. Joguei para o ar também os algodões que estavam nela, o suor com sangue voando em finas painas leves. O quarto numa tempestade lenta e macia de feltro, estofo, numa nuvem de tecido, gazes, emplastros, curativos ventilantes. O sorriso relaxando, até que não havia mais nada, apenas um corpo, curvas femininas sob a neve, no vento improvisado como o sol do jardim, no frio silencioso daquele nosso deserto.

Mariana Salomão Carrara
1º Lugar no Prêmio Off Flip De Literatura de 2012 - Categoria Conto.

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