TEMPO PARTIDO (3º Lugar/2012)

                
Tudo tem o seu tempo determinado,
e há tempo para todo o proposito debaixo do céu...
(Eclesiastes 3:1-8)
De víeis, olhavam-se.
Ao menor sinal de distração, as pupilas, aflitas, apresavam-se em  alcançar o canto dos olhos, de onde, audazes, apesar do receio,  espreitavam o desinteresse forjado um do outro.

De esguelha, através da porta de vidro que separava sala e cozinha, com curiosidade e espanto, ela o observava. As mãos inertes, apoiadas sobre os braços da poltrona, as pernas escancaradamente abertas, sem constrangimentos, os pês descalços, espalhados, os dedos feios e curtos sobre o tapete; ela absorvia todos os detalhes daquele corpo em desmazelo, jogado contra o estofado muito macio e fundo. Olhava-o, porem não o reconhecia, perdera-se a habitualidade do encontro. Ela não dissimulava mais: fitava-o atentamente, à procura. Precisava encontra-lo, sabia, tinha certeza de que se o olhasse com atenção, com mais vontade, com fixidez, sim, com certeza o encontraria; logo ele voltaria a ser o homem grande e viril de sua lembrança, logo a sua voz reaveria o timbre grave, aquela sua rouquidão tão singular, entre sedutora e atemorizante. Sim, se olhasse mais um pouco, se esperasse apenas mais um pouco, de súbito ele se levantaria enérgico e se ouviriam passos firmes, o peso dos pés calçados ressoando sobre o assoalho velho da casa, no corredor, de um lado a outro, incontáveis vezes, a sua necessidade imperiosa de movimento; e as mãos enormes do homem, agora moles e inúteis, recobrariam a destreza do trato, a precisão de jeito e de gesto e cingiriam todas as coisas, como se em cada palma coubesse uma porção irrestrita do mundo; e depois de todas as coisas, cingiriam unicamente a sua cintura, erguendo-a alto, ate mais acima dos ombros largos dele, até posar-lhe o quadril frágil, pequeno e leve sobre aqueles mesmos ombros largos, de onde ela poderia, caso inclinasse o corpo um tanto para trás e sombreasse os olhos com as mãos, admirar, sem obstáculos, o céu, limpidamente. Sim, bastava que ela tivesse paciência, bastava tão só isso. Atrás da porta de vidro, comprimindo uma pálpebra contra a outra, de testa e sobrancelhas franzidas, ela se esforçava gestualmente para descobrir indicio, o resto, ao menos vestígio de bruteza, do homem que certa noite a acusara com violência, o dedo em riste, o lampejo de raiva no rosto, o cuspe, o nojo; puta, vadia, vagabunda, puta, puta, puta, o homem que a condenara a antiga culpa de toda mulher, ainda que não houvesse pecado, mas apenas certa felicidade simples de que ele não era capaz, uma alegria leve da qual ele próprio se privava. Não, nem mesmo a violência ela podia reconhecer, nem mesmo a brutalidade, o medo, a retidão de quem sustenta, nutre e ordena. A memoria a traía.

Sentado na poltrona, de soslaio, ele a fitava. A silhueta não lhe aparecia nítida, mas esfumaçada, indefinida atrás do vidro da porta; distinguia-se um borrão colorido, contorno vagos, uma nódoa, uma mancha, uma suspeita, a aposta de quem arrisca lembrar-se, de quem ousa recompor o que já não é. A mulher destoava daquela outra, a primeira, a das fotos amareladas, a da poeira e do esquecimento, encerrada nos porta-retratos e nos álbuns de família em que todos sorriem, embora os dias e lugares sejam comuns; em que todos sorriem, sorriem, sorriem sempre, sorriem muito, sem qualquer motivo de riso, em restaurantes e praças e zoológicos, em bares, piscinas e clubes. Na memoria, os dias são outros. E como os dias e os lugares e o riso, ela também se transformara, e tanto. Esta de hoje, de seios, pernas e coxas roliças, o corpo inteiro muito redondo e gordo, debaixo do braço dobras de pele sobrando, as ancas e o abdome flácidos, sobressalentes, apertados na calça justa, esta de hoje totalmente desconhecida do homem. Perdera-se a intimidade, a cumplicidade dos primeiros tempos quando ele podia cingir-lhe, sem medo e sem pudor, a cintura magra, infantil, e dedicar-lhe a afeição mais terna e mais suave e fazer lhe cocegas e cafuné despreocupado, enquanto ela penteava os cabelos, alisando-os várias vezes só para prolongar o prazer dos carinhos dele na sua nuca e costas. Tampouco reconhecia a mulher que antes lhe provocava os ciúmes de quem zela, de quem, sobre todas as coisas, ama. De quem, por amor, fere e agride, e ataca e cospe a saliva que quisera beijar, e bate com a intenção e a força de quem quisera tão só proteger. De quem pretendia apenas resguardar da maldade do mundo, em clausura, poder de catre e de colo, de quem só autoriza a vida debaixo de supervisão tenta, conforme reza Deus e a moral dos homens, a moral rígida dos homens, mantida por e para, exclusivamente, eles. Esta mulher de hoje não lhe despertava nada, era lhe, pois, apenas sombra, reminiscência que não esquenta e não conforta, mas confronta; mulher fosca atrás do vidro, vulto que denuncia destroços, o estrago, o desfazimento inevitável daquilo que, uma vez, simplesmente fora certo e caro.


Ela então abriu a porta e veio se aproximando até sentar-se no sofá ao lado. Durante a trajetória, seguiram-na os olhos enviesados, tortos, do homem. Ele fingia descompromisso, ignorando a presença incômoda próxima a si; desejava imensamente ser habitual, à mentira das famílias que se sentam à volta da mesa e que pedem a manteiga, por favor, ou travessa de arroz, e das crianças que brincam com o cachorro, e da esposa que finge prazer, e do pai que não quer, mas frequenta reuniões escolares e jantares aborrecidos com os sogros da filha mais velha. Ele a olhava, mas não diretamente; tinha medo de afrontar, com demasiada crueza, a verdade subjacente àquela farsa, o nada a mais pungente ausência. E enquanto ele se esquivava, ela permanecia sentada, quieta e imóvel, apenas piscando e respirando, involuntariamente.

A proximidade de ambos fazia crescer o desconforto. Lado a lado, corpo a corpo, embate mudo entre o que já fora e o que hoje é. Aos poucos, a mulher, ainda que não se sentisse frágil, nem delicada, tampouco menina, começou a afundar-se no acolchoado macio do sofá e a tornar-se pequena, encolhida, o peito curvado para dentro, escondendo os seios volumosos sob o peso da corcunda, os cabelos soltos, longos, antes presos em um coque atrás da cabeça, agora lhe caiam, muito lisos, sobre as bochechas escandalosamente vermelhas de tanta maquiagem. E ela, forjando um sorriso, contorcia os lábios finos numa expressão de irônica suavidade.

E também o homem, embora desejasse permanecer frouxo e distraído, submeteu-se à rigidez do de antes, num sobre-humano esforço para lembrar-se outro. Com vagar e penosamente, reanimavam-se os músculos lassos e reaparecia o tônus das mãos e pernas, ainda que tímido e insuficiente. Desconfortável nos próprios movimentos, ele se remexia na poltrona; reacomodava se, soerguendo se levemente. Sim, o homem esforçava se; no orgulho do peito, imperceptivelmente empertigado, no vigor das mãos, procurava reencontrar se. Também nos olhos havia uma tentativa ineficaz de regresso, de retorno à retidão de antigamente, em absoluto contrária ao seu imediato impulso de abandonar-se a qualquer caricia e assumir-se fraco, covarde e cansado.

E quando, apesar de tudo, de tanto, afinal aceitaram, a impossibilidade de tornar ao inicio, ao antes, ao indiscutivelmente desfeito, decidida a, ela se levantou, embora tremesse. Despida da menina que tentara recuperar, sem pressa, a mulher ergueu-se. Ao perceber o que ocorria ao lado, também o homem desistiu do esforço, já não era preciso, poderia, ao mesmo uma vez, ser fiel a si, à sua velhice.

Assim, esquecidos da ironia, os lábios finos da mulher sorriram com bondade. E, antes de abandonar a sala, ela pousou suas mãos sobre os ombros magros do homem:
- Pai.

Júlia Baranski
3º Lugar no Prêmio Off Flip De Literatura de 2012 - Categoria Conto.

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