PELO JADE DAQUELE MAR PARATI (2º Lugar/2012)


                Eva escorregava com alguma competência, nenhuma poesia, pela sensaboria dos dias que seguiam cinzentos como enfim eram seus cabelos de vestígios aloirados. Uma tarde de inverno, cinzenta assim em Leipzig ou as sirenes do Arbeit Macht Frei em seus ouvidos, eternas, elas, Eva olhando longe, sobre poltrona bege, os olhos de um azul desmaiado, desnorteada pela demasia desses dias, sucessões lentas. Neblina em Natal, coqueiros acabrunhados enquanto Rita abraça Antônio, vidraças embaçadas, vento retinindo. No rio, sol em fagulhas, Júlio se tranca no banco de dados de um dos maiores jornais do país e aspira longo, dolorido, sente o pó entrar num cheiro de cravo, o travo na boca, acelerando, o beat a voltagem, revivendo amortecido rápido. Mas Rita morde com raiva e gana o pescoço de Antônio, num ódio que os entrelace ainda mais; a afirmação de que abraço não significa trégua, pode ser às vezes, no máximo, hipnose, promessa rápida mentirosa. O avião rasga o céu turquesa de Brasília, aquele céu parado ausência de nuvens, e vácuo. Segue ao Norte. Gustavo tentando se segurar, mareado, inclinando num pedido de socorro a aeromoça. Escultural. Excesso de maquiagem, cabelos improváveis, mas olhos fátuos, insidiosos, doloso o conjunto olhos-boca-bunda, que era só o que Gustavo conseguia ver. Lúcia arranca um tufo de cabelos de Letícia, mas não. A obrigação, as vacinas, o leite, o desassossego, milhares de horas em desenhos na TV. Lucia, não. E Leticia: aquele cheiro no colo da mãe, ainda doce, apesar, Leticia chorando, cabeça dolorida, mas o cheiro, o cheiro. Da mãe. Não. Marta zunindo no carro para nunca mais. Jamais fazer o mesmo percurso novamente. Caminho que por trinta anos fizera, furtiva, ladra, nunca mais, Áureo, acabou, Marta a amante, a espera diária, dezmilnovecentoscinquentadias, contara, as pequenas coisas, as grandes também, fim desse não-casamento no que lhe parecia uma quase-separação do que em fato não ocorrera. Cansada das inverdades, das promessas rebarbativas, claro, as mesmas, o cheiro dele, o da mulher dele, entre os dois. Trinta anos, as cabras, a cobra persistente, mulher dele, a cobra chifruda, sabendo ser traída, três décadas, meu deus!  E ainda lá, sempre aqui. Eu é que fui traída por ele, com a própria esposa, não? A casa de Eva um antiquário em objetos fotos níquel estanho ouro de família, ídiche. A comida do Shabat preparada de véspera, o havdalah antes do jantar, a Torah, essa vida apócrifa, a Menorah, as coisa do Pessach, a minha vida sombria sozinha, pensou. Chovia muito lá fora, e Eva não perdoava. De ódio, bengala, vivera muito. Regina, dentro do veleiro que, desgovernado, entranhava num espinhal de mangue, deslizando pelo jade que era aquele mar Parati, só olhava, só sentia vagamente, tutano não tinha para o tapa na cara, o chute, Sentimentos sofisticados, aqueles, quase aziagos, quase puros, contradição. Só um mês ali, com Beto, encalacrada naquele mundo de mar aberto verde, ambos se respirando mutuamente, autofagia, a proposta quase suicida de os dois só e ninguém, e nada mais. Regina e Beto. Em São Paulo, a vida andava perigosa para Vilma: parada demais. Precisava enlouquecer. Não aquela loucura mansa de todos os dias, mas uma que viesse de ímpeto, arreganhando os dentes. Não a loucura do cotidiano, estabelecida nos semitons entre branco e preto. Mudar coisas de lugar ou coisa nenhuma. Joel é o pai claro, o cabelo rente como o de um oficial da Stazi, vozeirão tonitruante, a mulher marrom, de corpo alongado, o vestido no recato de evangélica, bíblia em mãos, equilibrando-se numa falsa alegria entre o pai e o filhozinho; entre os dois sempre a contenda no ciclo interminável de provocações, permissividade, vacilante, quentes surras ao final. Viscosidade. Ela, cor de tronco de arvore, carregando vocação transgeracional para suportar o insulto. Complicação de pelos escapando dos ouvidos do homem já envelhecido, mas om porte olímpico. O vinco do sorriso de lado marcando-lhe o rosto. A mulata com o cabelo crespo feito touceira, seus dentes tortos e muito brancos contrastando, a insegurança mesclada á soberba de quem subiu um pouco na vida e não vai abri mão disso. Ora, o seu marido avermelhado, levemente atlético e espadaúdo, ora o cercado com os filhos gêmeos, um tanto tardios, ambos de traços mais finos ainda, os dois brancos, ao lado do pai, Em Natal o sol reaparece aberto, 40º C, um sufoco. Antônio ganha a rua, floreia Rita com begônias roubadas e diz adeus ate mais tarde a gente se fala volto às nove horas. Ele sabe que não voltara nunca mais.  Ela não. Júlio, carioca, redação de jornal, na sua cadeira de editor geral do diário define a pauta – ele sim decidira onde se devera comer. O que vestir, o que ouvir, o que ler, o que pensar, no que acreditar, pelos próximos sete dias. Hálito ruim e o halls refrescando. O avião segue branco picotando o céu, Gustavo agarra a aeromoça, rijo, não. Gustavo sonha. Letícia, passos mínimos, em pequenos tropeços, leva o copo de suco de laranja, trêmula, ao quarto da mãe, como quem pede perdão sem saber do quê. Como quem pecou, quando não, só nasceu. Quando pecado é ter nascido dela, Lúcia, que ronca e chia. Quase imunda, quase ninho. Letícia não pensa isso, mas sente. O medo, só. Queria carinho do bom. E o suco de laranja entornado de tremor na camisola da mãe. Daquela mãe que não. Regina pula ano mar furando a esmeralda e não jade que é a superfície das três horas da tarde. O sal na pele, olhos muito abertos, cada vez mais azuis o verde lá de dentro, vendo tudo lindo tudo coral ali. Marta vai mesmo. Não sabe para onde. Não volta. Marta vai. Os gêmeos, a menina e o menino brancos como o pai. Aquele pai, Joel, o ar contido de quem guarda segredos. Tão unida, a família, com seu pai branco-avermelhado de sol, cabelo arrepiadinho, a mãe compassiva e evangélica a segui-lo em sorriso cheio de dentes. O menino tão doce, calça justa, nádegas redondas, a menina, poucos sabem, cruel mostrando língua, os traços adilados desculpando o semblante sempre fechado, afundado nos leds do seu computador de boldo. A mãe, seu sutil encurvamento. No negro de uma madrugada anônima ela teria sido flagrada em fricções com o patrão vermelho nos quartinhos do fundos por aquela que fora então esposa dele. O ar reticente do casal denota escândalo, condenação e um presente que emerge em susto rumo a futuro incerto. O sol desfalece no horizonte perdendo a batalha contra a noite. E de dentro dessa noite emerge Beatriz exuberantemente colorida. Menos de vinte, trajes fatais, Vivendo um tom acima. À espera de um velho abastado Lea é a herdeira de pais mortos. Vez em quando Beatriz desaparece na porta do apartamento de Lea. Lea cadavérica, a pele como borracha esticada revestindo vida opaca, encharcada de anfetaminas, cocaína, uísque. De tempos em tempos, os esclarecimentos à policia que não decifrara ainda se assassinato ou duplo homicídio: fato é que o senhor Atila e a senhora K. Apresentaram doses elevadas de veneno em sua evisceração azulada, estirados na bancada de mármore para a autopsia. Retalhados pelos legistas.


Eva, avó de Lea, em cerimonia solitária, bebe vagarosamente o chá de tília, já totalmente frio.

Vanessa Maranha
2º Lugar no Prêmio Off Flip De Literatura de 2012 - Categoria Conto.

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