Era a década de setenta. Shows ao vivo com os cantores em evidência só existiam mesmo nos bairros mais nobres do Rio de Janeiro, embora os sublimes resquícios da bossa-nova ainda permitissem a ocorrência dos encontros informais movidos a um belo piano, violões e baixos acústicos regados a uísque do bom, um caviarzinho e outros afins. Nas regiões suburbanas, num boteco ou num fundinho de quintal, aquele sete-cordas de lei, cavaquinho, tamborim, pandeiro e às vezes um surdão para cadenciar o showzinho doméstico sempre com algumas mulatas embevecendo os sambistas e simpatizantes.
Era o tempo dos videoteipes, entretanto as rádios em AM eram eficazes na cobertura dos eventos principalmente das zonas norte e oeste. Por outro lado, o rock brasileiro rolava solto e cada garagem tinha sempre um clone dos Beatles ou Rolling Stones executando versões tropicais que levavam ao delírio as gatinhas e brotos metaforizados pelo som nada metafórico do Roberto e do Erasmo Carlos.
Pois é... estávamos em Marechal Hermes, bairro tradicional suburbano, onde o point cultural chamava-se “ Armarinho da Ponte “ , uma lojinha paralela à linha dos trens, que promovia festivais apresentados por um locutor normalmente da Rádio Nacional, a principal difusora da cultura musical e o show do dia era realizado pelo conjunto The Fevers num palanque armado em frente à passarela subterrânea que ligava os dois lados.
Uma infinidade de pessoas assistia ao espetáculo e a banda atacava com uma música do Jonhy Rivers, It´s to late, enquanto o refrão repetia: “ Já cansei... já cansei... e ninguém cansava, todos dançavam: jovens, idosos, adultos, crianças, à exceção dos Casaizinhos que aproveitavam o ensejo, já que atenção era toda voltada pra a banda, para se beijarem à moda Marilyn Monroe, que enfeitava as telas de cinema com sua glamourosa sedução.
Indivíduos de vários tipos e de várias roupas acotovelavam-se onde quer que pudessem ficar, para cantar em coro, pular e gritar.
Sobre a escadaria, na passarela que dava para a estação de trens, havia um grupo enorme e, de lá, partiu o inusitado: parecia que uma galinha chocadeira voadora sobrevoara a banda, porque pelo menos uma dúzia de ovos caiu como um míssil sobre os componentes do conjunto. Um deles explodiu sob a pancada da baqueta; outro, sobre as cordas da guitarra; mais um, no contrabaixo; outro mais num bemol com sétima para receber um acorde básico, lambuzando os dedos elétricos do tecladista .
Repentinamente, a banda parou de tocar e os últimos acordes soaram a La Hermeto Paschoal, meio dissonânticos e pegajosos pelas claras galináceas que escorriam guitarra abaixo. Fosse na Europa, todos aplaudiriam de pé.
Não demorou muito e, após as risadas, a primeira locução pornofônica explodiu: - Quem foi o filho da puta que jogou esses ovos ? Alguém tomara o microfone de um dos componentes da banda e começou a vociferar desvairadamente. Houve um silêncio fúnebre que se eternizaria, até que a segunda saraivada galinácea acertou em cheio locutor, deslizando-lhe gosmentamente pelos cabelos e caindo-lhe sobre a camisa havaiana, típica da época... aí, a polícia chegou e o oficial – que não contivera um riso disfarçado – ordenou que o pelotão dispersasse a massa com aquele carinho típico do início do famigerado ano de 1964. A porradoterapia rolou solta !
A pancadaria irrompeu e um dos cassetetes acertou a bolsa com os artefatos , expulsando pelo menos um pintinho atemporal que, estupefato com a vida fora da placenta ovípara, tentou voltar para seu útero,mas acabou pisoteado pela massa em debandada.
Hoje, o Armarinho da Ponte – como um setor de conveniências – perdeu o glamour e se restringe apenas, a exemplo das lojas de “tudo por um real “ , a vendas a preços módicos ( desculpem-me o fóssil linguístico ).
No meu silêncio, ainda ouço os Fevers cantando, a la Brasil, o eterno It´s to late do Jonhy Rivers, que eu traduzo perguntando: - Será que é... “tarde demais “ ?
Escritor, poeta, compositor, cantor, produtor musical, artista plástico, professor de literatura e língua portuguesa, ente outras especificações, Luiz Gilberto de Barros está sempre participando de atividades culturais, e mais uma vez, fica entre os finalistas no Concurso Literário Prêmio Moacyr Scliar e Ledo Ivo. Na modalidade de crônicas angaria o 2º lugar com o texto "ARMARINHO DA PONTE" e fica em terceiro colocado na modalidade de contos com a obra "BRINCANDO DE MORRER". O autor é bem eclético e já possui mais de 10.000 trabalhos, à saber: poesias, crônicas, novelas, músicas, ensaios e contos. Além disso, é Diretor Cultural da Associação Cultural Encontros Musicais, no Rio de Janeiro, sendo o pela produção e criação dos textos.
Déia Reis
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