Fiquei paralisada e atônita. A
folha, ainda verdinha de promessas despencou assim, de súbito e misteriosamente,
como uma folha seca que desaba da árvore quando chega a sua hora de
partir. Majestosa deslizando pelo ar, sem pressa, levada ao sabor do
vento, pra cá e para lá, flutuando num ritual célebre de adeus. De adeus e
infindo amor, por todo o tempo que viveram juntas: Ela e a Amendoeira. Ao cair
passou pela amiga bromélia, deu três rodopiadas saldando-a pela última vez, e
ficou presa, por apenas... cinco..... longos segundos... no pé de camarão. Olhou
para trás, suspirou, pousou e regressou ao pó.
Assim foi a foto... A
fotografia do grupinho de amigas do Natal anterior. Sarah tinha então onze
anos. Todas vestidas de Papai Noel, alegres, bico pintado, celebrando o
Nascimento do Menino Jesus na maior algazarra. Foto colorida de vermelho
intenso, sorrisos fartos e promissores. Gargalhadas soltas tilintando no ar. Como é que aquele retrato foi parar ali
naquela revista em quadrinhos do Cebolinha? Resposta óbvia: a revistinha antes
de ser minha foi dela.
Minha filha se foi em setembro e
a dor é muito recente. Não me acostumei com a sua não presença. O coração está
em frangalhos. Pra tudo o que
olho, todos os meus pensamentos, são sempre dela: Sarah. A ferida está exposta
e a fotografia que caiu aos meus pés parece vinagre esbraseando tudo. E justo
hoje, na Noite de Natal, apenas três meses depois... Precisamente no momento
que meus lábios teciam uma oração por essa morte tão virulenta de uma bailarina
que não aconteceu... A lembrança aparece assim tão suavemente à procura do meu
colo? Mistério, saudade e desgosto no mesmo cálice. Não deu para segurar, fiquei entalada. Rios corriam
por minha face e num segundo me vi lá, no fatídico Dia do Enterro, na
reportagem que saiu no jornal. Segurei as pontas.
Mas voltando a foto, ela caiu
assim inusitadamente no meu regaço, no instante que pensava na minha doce
menina. No crucial instante que refletia que ela também teve o seu calvário, e
que igual a Jesus teve uma morte de cruz. Vi num relance o seu sorriso na foto,
que depois do aconchego do meu colo, escorregou para o chão, frio e impessoal.
Imperiosamente fui à busca daquele momento, não queria que ele escapasse de
mim, precisava da dançarina viva de novo, nem que fosse apenas por ver e fingir
que nada tinha acontecido. Uma pollyanna velha brincando do Jogo do Contente. Tão linda era a minha criança.
Tão cheia de vida. Mas reparando melhor na foto, agora, ela tinha um olhar de
despedida, de quem sabia que não ia ter tempo de realizar tudo que tinha
planejado. Muito menos um sonho que tivesse sapatilhas cor-de-rosa, sua cor
preferida.
Só posso crer, cada dia mais, que
Deus existe, sim senhor, e que por um breve momento Ele abriu as portas do céu
e permitiu que uma criança viesse à terra naquela folha que caiu, ou
melhor dizendo, naquela foto. Teve dó de mim o Todo Poderoso e consentiu que a garotinha
que tinha virado anjo, descesse por um instante naquela imagem. Descesse só
para dizer que também sentia saudades, que lamentava a minha dor, tanto quanto
eu pranteava a lembrança dela. Aos poucos fui serenando, o bolo na garganta foi
aliviando, as lágrimas secaram e senti uma paz tão grande invadir o meu ser,
como se a pequena mãozinha dela estivesse pousada sobre minha. Vocês podem
pensar que é loucura, mas ouvi nitidamente a sua voz tilintando:
- Sossega, mãezinha, estou
bem. Acalma seu coração. Vai chegar o dia que estaremos juntas novamente e
desta vez para sempre. Preciso ir agora. Sou feliz. Deus faz tudo perfeito.
Acredite e tenha fé. Te amo. Feliz
Natal!
Escutei o som de sapatilhas
rodopiarem no céu e depois silêncio. Igual à folha que caiu se despedindo de
seus afetos, pude sentir seu amor me tomar
por inteiro, por apenas alguns fugitivos segundos, me envolvendo num abraço atemporal. Depois, o bater do relógio anunciando
a meia-noite e os fogos ribombando loucamente no céu, feito um louco
caleidoscópio.
Georgete Reis
(Participação no Concurso da
Academia do Vale do Taquari / Rio Grande do Sul
Ano de 2015)
* Em homenagem póstuma a minha querida sobrinha SARAH BRUNO REIS, que faleceu tragicamente aos 12 anos de idade, alguns meses depois da foto postada no artigo.)
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